Escrito por | Thiago Julio
[Contém spoilers!]
Um bom jornalista sempre terá argumentos para sustentar seus posicionamentos e escolhas dentro de uma redação. A afirmação irretocável de minha professora de Deontologia e Ética perpetua o meu imaginário até os dias de hoje, quase que como uma cantiga de ninar nostálgica ou um hit chiclete do verão. Frase essa que voltou a gritar no meu pensamento ao assistir The Morning Show, carro-chefe do sistema de streaming da Apple lançado no ano passado. Com enxutos 10 episódios, a série-dramática trata o movimento #MeToo, que ganhou notoriedade após milhares de pessoas – principalmente mulheres de Hollywood – divulgarem casos de assédio sexual sofridos por elas no ambiente de trabalho. Mas também discute o posicionamento do profissional que, para ficar intacto no mercado, se sujeita aos logros que surgem no caminho ou vai contra seus próprios princípios.
A trama gira em torno dos bastidores do programa jornalístico mais assistido dos Estados Unidos, The Morning Show, da rede ficcional UBA. Misturando noticiário sério com faits divers, aqui exemplificado com uma apresentação musical da cantora Kelly Clarkson, por exemplo, o show vira o centro das atenções quando um dos âncoras, Mitch Kessler (Steve Carell), é denunciado por assédio sexual. A notícia ganha proporções gigantescas e atinge não somente o apresentador, que perde o emprego, mas toda a produção. A cada episódio, descobrimos a conivência de anos por parte do presidente da emissora, Fred Micklen (Tom Irwin), e dos colegas de trabalho, especialmente da também âncora Alex Levy (Jennifer Aniston) e do produtor executivo Charlie “Chip” Black (Mark Duplass).
O escândalo abala o país, uma vez que Alex e Mitch eram a representação da dupla perfeita, os “queridinhos da América”. O enredo ganha corpo com o medo que paira sob a personagem de Jennifer, as declarações do assediador indicando a conivência dos demais e a chegada, pra lá de turbulenta, de um novo rosto ao programa: Bradley Jackson (Reese Whiterspoon). Repórter de campo da South East News Network, a moça é demitida da emissora local após confrontar um manifestante, tornar-se viral na internet e ganhar fama nacional ao parar na bancada do The Morning Show, substituindo o assediador confesso. E é por ela que começo a análise.
Problemas familiares à parte, Bradley Jackson é apresentada como uma mulher sem filtro, com presença forte e ciente dos seus princípios. A primeira temporada termina com a personagem apresentando as mesmas características, mas isso após nuances de dúvida e muita insatisfação com o novo ambiente de trabalho. A personagem, nos primeiros episódios, desconfia dos motivos que fizeram o executivo da divisão de entretenimento Cory Ellison (Billy Crudup) se aproximar dela e trava, no episódio That Woman (Aquela Mulher), um embate com a produção por conta da personalidade roteirizada que o programa lhe impõe. Tudo piora quando ela para de seguir o teleprompter e compartilha a experiência de um aborto que fez na adolescência, notícia que dividiu as críticas do país, mas fez a audiência do show aumentar.
Reese Whiterspoon como Bradley Jackson (Divulgação: Apple+)
Imaginem um jornalista recém-formado, que tivera experiências só em estágios, assumir graças à sua competência técnica um cargo importante na assessoria de comunicação de uma prefeitura. Quando solicitado para divulgar algum release endeusando tal candidato político, o que moralmente não é indicado, precisa se posicionar para ofertar um serviço de qualidade e que siga as diretrizes da profissão – mesmo que isso lhe custe o emprego. O que é feito por Bradley ao aceitar fazer uma entrevista com Mitch, para entender todos os pontos que ligam as acusações de assédio, e ao deflagrar em rede nacional, com Alex, todo o contexto, originado lá no presidente da UBA.
Então temos Chip, Alex e Fred. O produtor executivo, a âncora e o presidente da emissora, respectivamente. Todos sabiam há anos sobre a podridão que acontecia no camarim de Mitch, só que optaram por seguir a cultura do silêncio. Os cargos menores para manter os louros dos empregos no maior programa jornalístico estadunidense, enquanto a chefia não queria sujar o nome da empresa, muito menos perder a oportunidade de perpetuar o posicionamento machista.
Posso citar o “garoto do tempo” Yanko Flores (Nestor Carbonell) e a assistente de produção Claire Conway (Bel Powley), casal secreto que estremece devido ao medo de que acusações sofridas por Mitch caíam também sobre ele. Mas são as produtoras Hannah Shoenfeld (Gugu Mbatha-Raw) e Mia Jordan (Karen Pittman), que também sabiam de tudo, que desempenham papéis significativos para o desenrolar da trama.
As atrizes Bel Powley e Gugu Mbatha-Raw em The Morning Show (Divulgação: Apple+)
Ambas são vítimas. Ainda na posição de produtora reserva, anos antes, Hannah é levada pelo âncora para produzir a cobertura de uma tragédia em Las Vegas. Após um encontro casual, pós-expediente, Mitch a leva para o quarto e a ataca. A jovem tenta contar ao presidente da UBA, que a promove de cargo como forma de comprar o seu silêncio. De volta ao presente, toda a história é trazida à tona – com o assediador crente que poderia usar o depoimento dela ao seu favor – e a jovem é encontrada morta após ter uma overdose. O ápice para os atos finais da temporada. Mia, por sua vez, entra em colapso e revela a todos que também sofreu assédio pelo ex-apresentador.
The Morning Show se propõe a discutir a convergência midiática, a autoimagem dos profissionais que se destacam mais que as notícias e a relação do telejornal com o espectador. Também busca desmistificar os bastidores de um programa de TV, que é minuciosamente produzido desde a primeira fala do âncora até o último ângulo da câmera antes dos créditos rolarem na tela. Só que, acima disso tudo, a série trata o posicionamento dos profissionais indo ou não de acordo com as regras morais que regem a profissão, atrelado aqui ao movimento #MeToo.
Há o jornalista que extrapola todos os níveis morais, muito além dos profissionais; aquele que corrobora com a cultura do silêncio mesmo que isso machuque ou prejudique muitas pessoas, contanto que não respingue nele; e as vítimas do mercado, que não conseguem encontrar nas empresas o auxílio necessário em casos de assédio ou outras violências e que sofrem com as imposições sociais acerca de desemprego e fracasso.
Jennifer Aniston e Reese Whiterspoon na capa da revista Entertainment Weekly (Divulgação: Thomas Whiteside)
O drama não exita em se aprofundar no movimento #MeToo, que, segundo dados do jornal The New York Times, resultou na demissão de mais de 200 homens influentes depois de acusações de assédio sexual. Até perpassa a repercussão das denúncias contra Harvey Weinstein, considerado um dos empresários mais poderosos de Hollywood até ser denunciado por atrizes como Angelina Jolie e Rose McGowan, produtoras, entre outras profissionais do audiovisual. The Morning Show só não deixava claro nos primeiros minutos todas as esferas de discussão que traria consigo. A surpresa é certamente positiva.
Show de atuação
Fracasso e força são os pilares de Alex Levy. Num mix perfeito de cinismo, raiva e desespero, a apresentadora do programa matinal é obrigada a assumir o controle da situação após os casos de assédio serem deflagrados, de uma forma não tão usual e sem saber exatamente como agir. O turbilhão de emoções é inflamado com a ameaça de demissão por conta da idade, a luta para se manter no nível profissional, um casamento em ruínas e a relação estremecida com a filha Lizzy (Oona Roche), que sofre com os respingos da separação dos pais.
Alex é o prato cheio para ótimas críticas e uma personagem de sucesso. Jennifer Aniston não deixa a desejar, muito pelo contrário. A série marca o retorno dela à televisão – ou sistema de streaming – num papel principal, após o sucesso atemporal do sitcom Friends. A atuação é diferente de alguns papéis cômicos retratados por ela no cinema nos últimos anos. A âncora do The Morning Show transborda complexidade e camadas diferentes de uma pessoa, assim como os papéis centrais da atriz em Cake e The Good Girl, filmes que a renderam indicações às maiores premiações do cinema.
Jennifer venceu o SAG Awards, promovido pela federação americana de atores, e alcançou uma indicação ao Globo de Ouro na categoria de melhor atriz em série de drama. Além disso, o seriado foi renovado pela Apple e deve brilhar na próxima edição do Emmy, premiação exclusiva da TV.
Jennifer Aniston como Alex Levy (Divulgação: Apple+)
#MeToo em Bombshell
The Morning Show não foi a única produção ao abordar, em 2019, a relação entre o movimento #MeToo e jornalistas. O filme Bombshell retrata os escândalos deflagrados por Megyn Kelly e Gretchen Carlson sobre os assédios cometidos pelo CEO da Fox News, Roger Ailes, contra funcionárias. O longa-metragem mistura fatos reais e fictícios – a terceira personagem central, Kayla Pospisil, foi criada para costurar a trama. A recepção da crítica foi positiva, principalmente por conta das atuações das protagonistas Charlize Theron, Nicole Kidman e Margot Robbie.
O ator Mark Duplass, o Chip da série comentada nesta publicação, também está no elenco. Ele interpreta Douglas Brunt, romancista, ex-presidente de uma empresa de segurança cibernética e marido da jornalista Megyn Kelly.
As protagonistas de Bombshell (Divulgação: Lionsgate)
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