Matéria de Melissa Bergonsi, especial para o Diarinho
Santa Catarina é o estado com a maior taxa de doadores de órgãos do Brasil, segundo dados do primeiro semestre de 2017 divulgados no Registro Brasileiro de Transplantes, na quarta-feira da semana passada, pela associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). São 37 doadores por milhão de habitantes (PMP) obtidos entre janeiro e julho deste ano.
Para se ter uma ideia, a taxa brasileira, mesmo com aumento de 11,8%, é de apenas 16,2 PMP. A façanha catarinense é qualificada como “extraordinária” pelo relatório já que se equipara aos índices de países desenvolvidos com maiores taxas no mundo como a Espanha (39,7 PMP), Croácia (39 PMP) e Bélgica com 32,4 por milhão de população. O Paraná, que fica em segundo lugar no ranking de doadores, obteve 34 PMP e logo atrás está o Distrito Federal com 29,6 PMP.
Outro conquista a ser comemorada é o baixo índice de recusa familiar nas entrevistas que autorizam a doação. Santa Catarina é o terceiro do ranking com a menor taxa de negativas: 35%. Ao todo, nos primeiros seis meses do ano, foram 277 mortes encefálicas com possibilidade de doação. Dessas, 212 poderiam ser efetivadas levando as equipes médicas a procederem com a entrevista familiar. Os profissionais conquistaram a autorização em 138 entrevistas, enquanto 74 famílias se negaram a doar os órgãos do parente. Com esse índice, o estado catarinense fica atrás apenas do Distrito Federal com 30% e Paraná com 34% de taxa de recusa familiar a doação de órgãos. O índice nacional é de 43%.
Para o coordenador estadual da SC Transplantes, Joel de Andrade, a adoção de um modelo de gestão inspirado no espanhol priorizando o treinamento e a capacitação de todos os profissionais envolvidos na questão foi essencial para a conquista dos índices que se aproximam aos dos melhores do mundo. “Em suma, assumimos que o caminho para melhorar a taxa de doação e a taxa de transplantes está na educação dos profissionais, dos 160 coordenadores que temos nos hospitais do estado, dos que trabalham nas áreas críticas identificando potenciais doadores”, contou.
A preocupação e foco de Andrade e de toda a equipe em se qualificar é para enfrentar justamente a entrevista familiar, considerada a etapa mais dura de todo o processo. “Essa é a hora que estamos conversando com familiares cheios de dor e precisamos estar conscientes da importância desse momento, dessa conversa. Temos em mente que essa é a única questão que a gente consegue interferir”, explica.
Segundo ele, desde 2010 a SC Transplante promove cursos de formação com instrutores de comunicação em situação de crise aos moldes da metodologia espanhola que ensina seus profissionais a interagir com a família, estabelecer uma relação de ajuda e solidariedade. “Se essa comunicação é feita corretamente, é dela que sai a possibilidade maior de as pessoas doarem”, garante.
Joel de Andrade aponta dois erros comuns cometidos por equipes médicas que abordam os parentes para preparar a possível doação. “Um profissional que vai comunicar a uma mãe que seu filho está em estado grave geralmente só ouve dessa mulher que ela quer ver o filho. Em vez de o médico levar essa mãe ou o irmão para que possa ver o estado de saúde do paciente, ele pede para ela se sentar para conversarem. O correto é levar o parente para que ele vendo, entenda a gravidade da situação e assim quem sabe possamos preparar melhor a pessoa para aceitar uma conversa sobre doação”, disse.
Outro erro que aumenta o número de recusas, segundo o médico, é não esperar que a família aceite a morte em questão. “Quando se comunica a morte, é muito comum que a família ainda use o verbo no presente. O José é uma boa pessoa, ele gosta de arroz e feijão. Ela está dizendo com isso que ainda não acredita que o José esteja morto. O correto é esperar que caia a ficha da família, que se respeite o momento, caso contrário você vai aniquilar a entrevista e a possibilidade de conseguir a doação que poderá salvar outras vidas”, explicou.
Uma morte, cinco vidas salvas
Desde os 14 anos aquele menino vivia em função do futebol. Ele morava no Pará com a mãe, o pai e a irmã, mas queria ganhar o mundo jogando bola. Quando completou 16, achou que já era a hora. Saiu de casa com a permissão da família em busca de um time. Jogou no Atlético Paranaense, passou por times de São Paulo até chegar em Campo Grande/MS.
Era a Copa de 2010, julho, e ele já contabilizava cinco anos de estrada. O contrato com o time havia acabado e com vontade de ficar mais próximo da família se mudou pra Florianópolis, onde o pai vivia na época.
Dona Marli, que se separou do marido no meio do caminho, morava em Balneário Camboriú e decidiu largar tudo para ficar perto do filho em Floripa. Foi onde ficaram até a morte de Carlos Alex Rodrigues, na época com 21 anos. “O futebol era a paixão, era o sonho de vida dele. Sei que ele realizou”, diz Marli Ehrenbrienk, 47 anos, sempre emocionada ao falar do filho.
A noite de domingo de 5 de setembro interrompeu os sonhos de Carlos. Era feriadão da Independência e ele, os amigos e o pai foram tomar um chope no quiosque de um shopping, em São José, na Grande Florianópolis. Foram para lá porque um amigo insistiu que desistissem de uma festa na Ilha da Magia por conta do trânsito pesado da madrugada do feriadão.
Mas, no fim da noite, duas amigas pediram carona até os Ingleses, no Norte da Ilha de Floripa. Eles as levaram, mas na volta, o amigo de Carlos Alex que estava na direção, não enxergou um ônibus estacionado na rodovia que ocupava o pequeno acostamento e invadia parte da pista. No instinto, ele tentou desviar, mas não foi o suficiente para salvar o amigo que estava no banco do passageiro.
Carlos foi levado ao hospital Celso Ramos, com traumatismo craniano. Da madrugada de 6 de setembro, até o domingo, dia 12, foram os dias mais difíceis da vida de Marli. “Eu tinha esperança porque sempre que ia vê-lo na UTI e o tocava sentia que o coração dele acelerava”, lembra.
Foi na sexta-feira, dois dias antes de Carlos morrer, que Marli pensou pela primeira vez sobre doar os órgãos do filho. “Foi um amigo meu que me chamou para conversar. Ele pediu desculpas, disse que não torcia pela morte do meu filho, mas perguntou se eu já havia pensado sobre a possibilidade de a vida dele ajudar outras pessoas a viver doando seus órgãos”, diz.
No sábado pela manhã, Marli retomou o assunto com a irmã. Horas depois, os médicos informaram que iniciariam o protocolo para declarar a morte encefálica do rapaz. “Quando a assistente social veio falar comigo no domingo pela manhã eu já sabia a resposta”, disse. A partir dali tudo foi muito rápido. “Eles precisam que a gente seja rápido porque há prazo e pressa para preservar os órgãos e dar tempo de salvar outras vidas”, recorda.
Marli aproveita seu duro aprendizado para aconselhar e incentivar outras famílias a aceitarem a doação dos órgãos. “Os pais, separados ou não, já devem conversar sobre isso para decidir antes. Eu sempre disse para os meus filhos que eu queria que doassem todos os meus órgãos quando eu morresse. Mas eu nunca perguntei para eles se queriam doar porque a ordem de quem vai primeiro não é essa. A gente deve falar mais sobre isso em casa porque quando chega na hora você tem que decidir rápido porque outras vidas estão em jogo”, aconselha.
Marli autorizou a doação de cinco órgãos do filho: coração, pulmão, pâncreas, fígado e um dos rins que salvaram a vida de cinco pessoas. “Na época eu não quis doar a pele e os ossos porque ele era um menino muito vaidoso. É que eu não tinha o preparo e a cabeça que eu tenho hoje. Eu deveria doar tudo porque o corpo dele não vai fazer diferença porque vai ser enterrado. Mas fará para muitas pessoas, como fez e faz até hoje”, conta.
Um coração para Kelly
Para tentar superar a dor da perda do filho, Marli conta que se afastou da internet e se afundou no trabalho. Quando chegou dezembro, precisou de um documento e foi até uma lan house em Balneário para imprimi-lo. Era época do Orkut e entre as mensagens acumuladas estava a do marido da pessoa que recebeu o coração de Carlos Alex. “Naquela hora eu quase desmaiei, passei muito mal e não respondi”, recorda.
Um mês depois, ela decidiu enviar de volta uma mensagem para avisar que quando se sentisse preparada, toparia o encontro. Na Páscoa de 2011, o casal veio a Santa Catarina e telefonou para Marli que marcou um encontro, mas se arrependeu e não apareceu. “Liguei para eles no dia seguinte, dizendo que não teria como nos encontrarmos porque eu teria que ir até o cemitério. Ela disse que iria junto comigo e que já estava passando para me pegar. Quando ela me abraçou foi incrível. Me abraçou como meu filho, a alegria dela, as atitudes, parecem que tem muito dele ali”, revela.
Kelly Santana do Vale, com 27 anos na época, sofreu uma parada cardiorrespiratória durante o parto da filha, em 30 de abril daquele ano. Depois de vários tratamentos, ela recebeu a indicação para o transplante cardíaco e saiu de Maringá (PR) para ser internada em Curitiba. Ela entrou na fila para conseguir um doador no dia 4 de setembro, véspera de seu aniversário e do acidente que vitimou Carlos.
Com uma família festeira e cheia de esperanças, conseguiu que o médico liberasse a comemoração no hospital com cerca de 40 pessoas, bexiga, bolo e brigadeiro. “Ao assoprar as velinhas, meu pedido foi uma segunda chance. Tinha uma filha recém-nascida não podia acabar ali. E Deus me concedeu esse milagre”, lembra.
Durante a internação, Kelly teve um infarto e os médicos avisaram que não poderiam mais reanimá-la caso tivesse um próximo. “Tive a última parada entrando para o transplante. Aconteceu aos 45 segundos do segundo tempo”, lembra. Depois de receber o órgão, Kelly passou por um ano de restrições, mas hoje leva uma vida normal ao lado da família, do marido e da pequena Anna. “Gratidão. Eu tentando ser mãe, buscando a oportunidade de vivenciar esse momento e a Marli no momento mais doloroso de sua vida, ela cedeu, doou amor”, diz emocionada.
Agora, todos os anos, desde então, ela vem visitar Marli que confessa já ter sentido medo de encontrar os receptores e os culpar pela morte do filho. “Eu tive medo de querer cobrar algo deles. Mas a gente vê que enterra um filho que é um pedaço arrancado da gente, mas ao mesmo tempo esses pedaços vão viver em outras pessoas que foram salvas pela tragédia dele,” diz.
Hospital Marieta tem um dos menores índices de recusa familiar
O Marieta é o hospital com o quinto maior número de doações em Santa Catarina e registra 13% de recusa familiar, uma das menores taxas do estado. No primeiro semestre de 2017, por exemplo, das 14 entrevistas com famílias feitas pela equipe do hospital, em duas os médicos ouviram o não dos familiares, segundo dados da SC Transplantes.
O hospital também foi, no primeiro semestre, o que conseguiu o maior número de doações de tecido ocular em todo o estado. Foram ao todo, 67 doações de tecido ocular e 20 transplantes de córnea. Hoje, dois pacientes estão na fila de espera para esse tipo de transplante no Marieta.
“Não queremos que um hospital faça muitos transplantes e consiga poucas doações. Tem que ser equilibrado. Conseguir as doações e fazer transplantes. A equipe do Marieta faz o trabalho com maestria”, atesta o coordenador estadual da SC Transplantes, Joel de Andrade.
SC tem histórico de 13 mil transplantes
No período de 18 anos, Santa Catarina viu o número de doadores de órgãos aumentar exponencialmente, segundo o histórico de dados da SC Transplantes, órgão fundado em 99, ligado à secretaria Estadual da Saúde e que coordena todas as atividades que envolvam transplante no estado, desde captação, lista de espera a políticas públicas. Os números mostram que, em 1998, foram apenas 21 doadores. Em 2016, foram 251 e até junho deste ano, a SC Transplante já tinha registrado 128 doadores, atingindo a maior taxa do Brasil e também de sua história com os 37 PMP.
Desde então, mais de 13 mil transplantes foram realizados no estado. Naquele ano, foram 128 procedimentos. Em 2016, o número saltou para quase 1300 transplantes, mais de três por dia. Desse total, córnea é o mais realizado com 600 procedimentos só no ano passado. Transplante de rim de doador falecido fica em segundo lugar seguido do transplante de fígado.
Ao ver o número de doadores e de transplante crescer, Santa Catarina também assistiu a fila reduzir. Em dezembro de 2010, por exemplo, 1741 pacientes esperavam na lista. Seis anos depois, a fila reduziu para 1/3 do seu número chegando, em junho de 2017, com 592 pessoas a espera de um transplante (393 ativos e 199 em tratamento para poder retornar à fila). Uma das maiores reduções foi a fila do transplante de córnea que contabilizava 1156 pacientes em 2010 e seis anos e meio depois foi reduzida para 87 pessoas.
Quem esperava por um transplante de fígado também enfrentou uma fila grande, de 171 pacientes, em dezembro de 2010. Em junho desse ano, a fila para o mesmo transplante é de 21 pessoas. Segundo a SC Transplantes, pacientes a espera de um transplante de córnea podem esperar até quase um ano. Já os que precisam de um rim, chegam a ficar cinco anos até encontrar um órgão compatível geneticamente. Hoje, 35 hospitais no estado realizam transplantes entre eles o Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí.
Caminho do transplante
1 É dado o diagnóstico de morte encefálica;
2 Família é avisada e precisa assinar o termo por escrito mediante testemunhas para autorizar a retirada;
3 Entrevista com a família para investigar histórico clínico (diabetes, fumo, uso de drogas, tatuagens) e rastrear possíveis doenças; se necessário, pede biópsia;
4 É feita a cirurgia para retirar o órgão, que é refrigerado e levado para a central de notificação até se definir quem será o receptor ideal;
5 Órgão é levado para o hospital onde está o receptor, enquanto ele faz o pré-operatório;
6 Medicação para evitar rejeição
ATENÇÃO!
Cabe aos familiares decidir sobre a doação dos órgãos. Por isso, é importante expressar a eles, em vida, a sua vontade de doar para que ela possa ser respeitada quando chegada a hora.
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